“Nós não queremos estar no meio de disputas geopolíticas. Só queremos viver as nossas vidas, mas isso está cada dia mais difícil.” O desabafo da estudante Summer H. W., 22, nascida e criada em Hong Kong, reflete bem o sentimento dos moradores da ilha ao sul da China.
Hong Kong foi colônia do Reino Unido por mais de 150 anos, mas, desde 1997, voltou a pertencer à China, em um acordo assinado pelos então primeiros-ministros Zhao Ziyang e Margaret Thatcher.
Na devolução do território, que se tornou uma Região Administrativa Especial (RAE), ficou sacramentado que a China não poderia alterar os regimes políticos e econômicos de Hong Kong por 50 anos, com prazo a expirar em 1º de julho de 2047.
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Desde então, por mais que tenha mantido a própria moeda e a mão-inglesa na direção, a população de Hong Kong convive com incertezas e com um controle cada vez mais rigoroso de Pequim — especialmente a partir dos protestos que levaram à instalação da Lei de Segurança Nacional em 2020 proibindo manifestações.
“Nós não temos liberdade. Não temos independência. Não há liberdade de comunicação, de expressão, de manifestação. Tudo isso foi dizimado”, comenta o guia turístico Andy S. P., 36, pedindo para não ter seu sobrenome revelado por segurança.
“Todos os veículos [de comunicação] estrangeiros que tinham escritórios aqui tiveram que ir embora. Não existe mais mídia independente. Só sobrou propaganda”, continua Andy. Até monumentos relembrando o massacre de 1989 na Praça da Paz Celestial ou em alusão à democracia foram removidos.
Os contrastes entre Hong Kong e a China Continental
As diferenças entre Hong Kong e China Continental são profundas e dão razão ao lema “um país, dois sistemas”, estabelecido na constituição do país para legitimar a autonomia de Hong Kong e Macau, ex-colônia portuguesa.
Enquanto na vizinha Shenzhen quase não se veem estrangeiros, as ruas, bares e a orla do Victoria Harbour em Hong Kong são tomadas de turistas com os mais diferentes sotaques, especialmente no show de luzes que ilumina os arranha-céus da ilha todas as noites, às 20 horas.
Como foi colonizada por mais de um século pelo Reino Unido, Hong Kong têm duas línguas oficiais: o inglês e o chinês. Mas o chinês falado em Hong Kong é o cantonês, diferente do mandarim usado na parte continental do país.
Via de regra, um chinês de Pequim ou Xangai pode ter dificuldades de se comunicar com um cidadão de Hong Kong e vice-versa. Da mesma forma, um turista estrangeiro terá problemas para se comunicar com os chineses, enquanto em Hong Kong todo mundo fala inglês.
A mão-inglesa na direção também é herança dos tempos de colônia britânica. Em Hong Kong, a direção dos carros está no lado esquerdo, ao contrário da China Continental que segue o mesmo padrão do Brasil. Carros não podem transitar livremente de um lado para o outro.
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A moeda local é outra diferença. A China Continental usa o Yuan (RMB), e Hong Kong adota o Dólar de Hong Kong (HKD) — outras regiões administrativas também têm suas moedas próprias, como a Pataca Macaense (MOP) e o Novo Dólar Taiwanês (TWD).
Em Hong Kong a internet é livre, sem restrições. Enquanto na China Continental sites e aplicativos do Google, da Meta e de outras corporações americanas são banidos, basta cruzar a imigração para navegar à vontade, sem a necessidade de um VPN.
Mas a liberdade tem seus limites. Desde 2020, a Lei de Segurança Nacional reprime protestos e manifestações. Ameaças à segurança nacional, como separatismo, subversão, terrorismo e “conluio com forças estrangeiras” podem levar à prisão perpétua.
Ao mesmo tempo, Pequim tem aumentado sua influência sobre o sistema político de Hong Kong, apoiando a eleição do atual chefe do executivo, John Lee Ka-chiu, e de boa parte dos representantes do poder legislativo local.
Burocracia
A travessia de uma região para a outra na China ilustra bem o controle do governo sobre o trânsito de pessoas que entram e saem de Hong Kong.
Ir de Hong Kong à vizinha Shenzen ou o contrário é como migrar para outro país. O trajeto de trem em alta velocidade dura apenas 15 minutos, mas as filas e processos na alfândega podem durar horas.
É preciso apresentar o passaporte quatro vezes: duas no lado chinês e duas no lado de Hong Kong, além de passar por identificação biométrica, raio-x nos pertences (duas vezes) e preenchimento de uma ficha com dados pessoais, endereço de destino, propósito e itinerário da viagem e um nome de contato na China.
“Estamos sob controle o tempo todo. Como residente de Hong Kong, eu posso ir para a China Continental quando quiser. Mas os chineses precisam de uma justificativa e visto especial para vir para cá”, explica Andy.
Até pouco tempo atrás, os brasileiros também enfrentavam mais burocracia na visita à região, com vistos de entrada única. Ou seja, um viajante que “saísse” da China para visitar Hong Kong não conseguiria mais voltar. Mas desde 2024 brasileiros têm direito a múltiplas entradas, em uma política chinesa para ampliar o fluxo de estrangeiros (chineses não têm essa regalia).
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Hong Kong é cara para seus próprios habitantes
Para turistas, as questões geopolíticas ficam em segundo plano diante de uma Hong Kong moderna, que mistura as tradições chinesa e inglesa em uma metrópole única, repleta de atrações turísticas, templos, centros comerciais e restaurantes premiados.
Mas por mais que exiba uma paisagem vibrante, com arranha-céus iluminados e uma vida cultural intensa, Hong Kong compartilha dos mesmos desafios econômicos da China com um agravante: a cidade está cada vez mais cara para seus próprios moradores.
O relatório Demographic International Housing Affordability 2024 criou uma nova categoria de cidades “totalmente inacessíveis” e colocou Hong Kong no topo. O mesmo acontece no último relatório anual de custo de vida da consultoria Mercer, que elegeu a cidade asiática como a mais cara do mundo para expatriados.
Paralelamente, a Oxfam Hong Kong estima que 20,2% da população de Hong Kong vivia abaixo da linha da pobreza no primeiro quadrimestre de 2024. Enquanto isso, na China Continental, o governo considera a pobreza extrema erradicada desde 2021 — sem muita transparência.
Uma das principais razões para isso são os custos com imóveis em Hong Kong. Com mais de 7 milhões de habitantes, a região tem uma das maiores densidades populacionais do mundo. E, ao mesmo tempo em que se converteu em um importante centro financeiro asiático, o desenvolvimento da ilha ampliou as desigualdades.
Um apartamento de 25m² pode custar até R$ 3 milhões. Já o aluguel de um apartamento de 45m² em uma região média custa aproximadamente R$ 14 mil, enquanto um apartamento de 85m² em região nobre ultrapassa os R$ 35 mil.
Mesmo com um salário mínimo três vezes superior ao brasileiro (cerca de R$ 4.680), fica difícil pagar essa conta. “Esse é o nosso principal desafio. Temos milhões de pessoas vivendo na pobreza, de forma nada digna”, protesta a estudante Summer.
“Hong Kong foi feita por imigrantes em busca de sobrevivência. Meu avô nadou de Shenzhen para cá após a Segunda Guerra Mundial, em busca de trabalho e de alimento. E agora é a minha geração que precisa encontrar maneiras de sobreviver no seu próprio país.”
O que irá acontecer em 2047, quando Hong Kong voltar integralmente ao domínio da China? O guia turístico Andy tem uma suspeita: “Acho que nem Pequim sabe.”
*Felipe Seffrin reporta da China.
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