Seu Zé era um menino pardo brasileiro, nascido em Cajazeiras, sertão paraibano. Em 1959, deixou sua terra rumo ao Planalto Central quando tinha apenas 17 anos. Ouviu dizer que um “pau de arara” — caminhão com caçamba onde viajavam retirantes nordestinos — estava chegando para recrutar trabalhadores para a construção da nova capital do Brasil. Como era menor de idade, não podia se cadastrar para o trabalho, entretanto, resolveu que deixaria o sertão escondido naquele caminhão.
Pegou uma sacola plástica, na qual a mãe guardava as certidões de nascimento dele e dos irmãos. E, como era o caçula da família e analfabeto, procurou pela certidão que tivesse o papel mais bem conversado, que seria a sua. Vestido com um par de roupas, um par de sandálias de couro e os documentos no bolso, esperou o caminhão dar a partida para entrar clandestinamente na carroceria.
Bebeu apenas água durante cinco dias, oferecida pelos outros trabalhadores da travessia, pois não podia comer nas pensões do meio da estrada para não ser descoberto pelo motorista. Nas noites, dormia algumas horas nas paradas à beira da estrada, entre os pneus do caminhão, aproveitando a borracha ainda quente da rodagem. Já fraco e com muita fome, confidenciou ao recrutador que ali estava. Oito dias mais tarde, chegava ao barro vermelho do Cerrado, no centro do mapa do Brasil, para ajudar a construir Brasília.
Trabalhava 20 horas por dia numa oficina de carpintaria. Juntou dinheiro durante três anos, comprando o básico: roupas, sapatos, cobertas e mandando parte do salário para sua mãe, na Paraíba. Mudou-se, então, para um vilarejo no interior de Goiás, onde ainda vive, aos 82 anos, casado com a artesã Dona Nega.
Outros “Zés” brancos, pretos, pardos e índios ainda vivem nos arredores da capital. Candangos e seus descendentes que moram no entorno de Brasília, nas cidades satélites.
Ao conversar esta semana com a atriz e antropóloga Iara Pietricovski a respeito das chamadas pautas identitárias, “que não são identitárias”, concordamos que, de fato, talvez tudo se traduza em lutas pelo reconhecimento, pelos direitos de existir, de serem aceitas como partes desta sociedade.
A população negra, que inclui pretos e pardos — pessoas que têm uma mistura de raças, principalmente, branca e negra, ou branca e indígena —, representa cerca de 57% dos cidadãos brasileiros.
Como diria o saudoso poeta brasiliense Tetê Catalão, os assuntos polêmicos são sempre mais bem resolvidos por meio da poesia. Termino, então, com este poema enviado hoje por mim para ser musicado pelo meu amado orixá Moacyr Luz.
“Eu já fui ticuna, cainguangue, macuxi
Já fui terena, Pataxó e Guarani
Minha língua era nagô e iorubá,
Kimbundu, Kikongo, Tupi
Baniwa, Baré, Zulu, Conguês
Depois, virei compositor de um novo português
Desde que nasci, bato tambor
Quem chegou pintou minha pele de cal
por cima do ébano e do urucum
O baiano acha que eu vim de Portugal
O inglês pensa que eu nasci lá na Guiné
Meu idioma é a língua geral
no pé do pau Brasil onde plantei o meu axé
Sou diferente como foi Joãozinho Trinta
com capoeira não se brinca
Desde 21 de abril de 1500
só de samba já compus mais de 200
Nasci junto com o Brasil
e sou de lá em qualquer chão
Não tenho pai, não tenho mãe
Aprendi no berço quem posso chamar de irmão
Qual é sua graça?
Satisfação
(Transcrito do PÚBLICO-Brasil)