A guerra comercial deflagrada por Donald Trump contra o resto do mundo vai muito além de déficits e superávits. Trata-se de uma tentativa dos Estados Unidos de mudar as regras de um jogo ainda em andamento para não sofrer uma derrota definitiva.
A afirmação é de Michael Every, estrategista global do Rabobank.
“Os Estados Unidos decidiram claramente que, se não agirem agora, perderão o jogo”, disse ele em entrevista concedida ao Seu Dinheiro para fazer um balanço sobre os primeiros 100 dias do segundo governo Trump.
“Pode ser daqui a quatro, oito, 12 anos. Você traça a linha. Mas, do jeito que está, eles vão perder. Estão mudando as regras do jogo”, afirmou Every.
O jogo ao qual o estrategista do Rabobank se refere é a globalização.
Ao término da Segunda Guerra Mundial, os EUA emergiram como o único país no mundo com capacidade industrial para atender à demanda de seus aliados.
Com o passar das décadas, à medida que os salários aumentavam e a desigualdade social diminuía, os EUA se transformaram no maior mercado consumidor do mundo e suas indústrias começaram a transferir a produção para países onde a mão de obra era mais barata.
Isso levou ao estabelecimento das empresas multinacionais e ao desenvolvimento de uma cadeia global de suprimentos a partir da década de 1970.
Mais adiante, com o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria, a impressão era de que a ordem liberal global havia obtido uma vitória incontornável e duradoura.
De produtores, os EUA passaram a ser o principal consumidor final do processo conhecido como globalização.
Pelas regras do jogo dessa nova ordem globalizada, os EUA suportariam déficits comerciais com parte considerável de seus parceiros.
Em troca, o uso disseminado do dólar nas transações e a demanda por Treasurys (títulos da dívida) garantiriam o financiamento da máquina norte-americana.
De quebra, permitiriam aos EUA imprimir dinheiro sem grandes preocupações com inflação interna ou endividamento.
- Você pode acompanhar a nossa cobertura completa dos primeiros 100 dias de Trump, dia após dia, aqui.
Os efeitos colaterais da globalização
Entretanto, talvez estivesse fora do radar a possibilidade real de algum país emergir do processo de globalização com capacidade de desafiar a hegemonia norte-americana. Eis que surgiu a China para provar o contrário.
Simultaneamente, os norte-americanos passaram a conviver com os efeitos colaterais da globalização.
Do ponto de vista social, “isso cria uma enorme desigualdade entre vencedores e perdedores dentro dos Estados Unidos”, diz Every.
Nos âmbitos global e institucional, a polarização internacional entre exportadores (China) e importadores (EUA) enfraqueceu o poder industrial de Washington.
“Com o tempo, isso significa que os EUA não podem desenvolver as Forças Armadas de que precisam para estar em todos os lugares do mundo ao mesmo tempo para impedir uma combinação [entre países considerados inimigos]”, afirma.
Every vai além e atesta que praticamente “todos os países estão vivenciando, sem ofensa, o que no Ocidente chamamos de brasilianização”.
Brasilianização é um processo por meio do qual o encontro com o futuro é negado e a frustração torna-se parte integrante da realidade social. O termo apareceu pela primeira vez em um artigo do analista Alex Houcholi na revista American Affairs.
Trump tenta passar o trator
Em meio à ascensão chinesa e diante do risco de perder o jogo inventado por seus antecessores décadas atrás, Trump agora vê na guerra comercial a solução para os problemas imediatos.
Para governos e observadores ainda perplexos com a velocidade dos acontecimentos, o problema principal estaria não exatamente nos objetivos, mas na forma como o presidente norte-americano propõe o estabelecimento de um novo sistema.
“Quase todo mundo está moral ou pessoalmente ofendido com o que os Estados Unidos estão fazendo. Quase ninguém simpatiza com o que eles estão fazendo e muito poucos acreditam que o que estão fazendo seja realista”, afirma Every.
No entanto, o estrategista do Rabobank considera essa visão reducionista e diz que um olhar mais objetivo e distanciado indica que a postura do atual inquilino da Casa Branca é qualquer coisa, menos surpreendente.
“As táticas de antes são exatamente as mesmas agora”, diz Every, que já no início do primeiro mandato de Trump apontava em seus relatórios para o risco de colapso da ordem liberal como a conhecemos.
“A diferença é que Trump está oito anos mais velho, então ele entende que não tem tanto tempo de vida. Ele está em um segundo mandato e, apesar das discussões sobre isso, este é seu último mandato como presidente. Portanto, ele tem apenas três anos e meio para realizar uma quantidade incrível de trabalho.”

Há outros aspectos mais relevantes, no entanto.
No primeiro mandato, Trump enfrentava limitações que não existem hoje.
“Antes ele não estava apenas lutando contra a oposição, mas também contra seu próprio partido”, afirma Every.
Hoje, com os democratas enfraquecidos e o Partido Republicano coeso em torno de si, Trump tem liberdade para ser mais radical.
“Portanto, ele pode usar as mesmas táticas, mas pode ser mais radical porque não precisa diluí-las”, diz.
Internamente, Trump aproveita o momento para confrontar as instituições. “Uma a uma, ele as está derrotando”, afirma o estrategista.
Fora das fronteiras norte-americanas, ele entende que os EUA exercem força gravitacional suficiente para bancar a guerra comercial.
Na avaliação de Every, para que Trump consiga atingir seus objetivos, uma transformação radical do mundo precisa ocorrer simultaneamente a uma transformação radical dentro dos Estados Unidos.
Mas o que Donald Trump quer, afinal?
“Donald Trump gostaria de ter uma zona de influência comercial sobre a maior parte possível do mundo, onde os EUA mantivessem um comércio equilibrado com seus parceiros, porque todas as tarifas foram eliminadas, todas as barreiras não tarifárias foram derrubadas e o governo exerce um papel relativamente pequeno, exceto em alguns setores onde é necessário para a segurança nacional. Além disso, a regulamentação é incrivelmente frouxa, e a tributação, incrivelmente baixa. Ao mesmo tempo, há controles rígidos sobre a migração e talvez também sobre a movimentação de tecnologia, por razões de segurança nacional”, responde Every.
A questão então passa a ser: o que esperar da guerra comercial?
“O ponto mais claro com o qual todos podemos concordar é que haverá mais volatilidade, muito mais volatilidade do que já vimos até agora, porque este é apenas o estágio inicial deste processo”, afirma o estrategista.
No entanto, é impossível prever no momento qual será o resultado da guerra comercial.
Pode ser o caos que tantos antecipam. Pode ser que, depois de um forte solavanco inicial, os Estados Unidos se reindustrializem e saiam fortalecidos como Trump gostaria. Ou então que arrastem o mundo inteiro para uma crise sem precedentes.
Pode ser que a China acelere seu plano de desenvolver um mercado interno de 800 milhões de consumidores. Também pode ser que os países tentem se descolar dos EUA e se aliem em blocos múltiplos sob novas ou velhas regras.
Há muitas outras especulações possíveis. Não existe bola de cristal capaz de prever o desfecho.
“As possibilidades são infinitas”, afirma o estrategista global do Rabobank.
Every também avaliou as consequências da guerra comercial para o Brasil.
Esse trecho da entrevista será publicado amanhã.
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