O grupo de grileiros no Pará investigado pela Polícia Federal (PF) teria usado “laranjas inconscientes” para fraudar processos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) com o objetivo de regularizar propriedades rurais.
Segundo a investigação, o esquema se dividia em seis etapas principais que permitiam que os integrantes da organização lucrassem com as terras griladas, por meio da venda de terrenos ou até a obtenção de créditos rurais.
A primeira dessas etapas se resumia em fraudar processos administrativos no Incra. Os documentos eram produzidos com numerações inexistentes e aleatórias, e eram inclusive inconsistentes com os padrões do órgão.
O objetivo, de acordo com a PF, era “criar uma aura de legalidade em torno de terras públicas usurpadas, preparando o terreno para as etapas seguintes do esquema”.
Era nessa fase que os investigadores descobriram que os investigados teriam usado os supostos “laranjas”, por meio do uso de informações pessoais de terceiros, como seus nomes, sem que estes sequer soubessem ou tivessem dado consentimento para isso.
Com isso, o grupo fazia com que os laranjas figurassem como supostos proprietários originários dos títulos de propriedade, despistando indícios de envolvimento dos grileiros.
“Além das irregularidades nos números dos processos, foi verificada a utilização indevida dos dados de pessoas reais, que figuraram como ‘laranjas inconscientes’, sem o seu consentimento ou conhecimento”, afirma a PF em representação à qual a coluna teve acesso.
Com a descoberta, a PF entrou em contato com os supostos laranjas para aprofundar a investigação sobre o uso indevido de seus dados e identificar se eles tinham ou não conhecimento sobre o fato.
Nesses contato, afirma a corporação, foi identificado que esses indivíduos não tinham ciência acerca do uso de seus dados, nem eram proprietários de terras que constavam nos processo do Incra sob suspeita – por isso o termo “laranjas inconscientes” utilizado na investigação.
Após entrar em contato, narra a PF, ficou “comprovado que essas pessoas, de fato, não tinham conhecimento de que seus nomes haviam sido usados no esquema criminoso”.
Segundo documentos da investigação, foram identificadas pelo menos 17 pessoas que tiveram seus nomes usados indevidamente nas fraudes. Grande parte desses laranjas eram pessoas idosas, com mais de 60 anos, e alguns chegavam a idade superior a 80 anos.
No contato realizado pela PF, no momento em que o agente questiona sobre a propriedade em questão, os que responderam negam ser donos de qualquer terra e chegam a questionar se o investigador entrou em contato com a pessoa correta.
“Esse início do esquema não só estabelece as fundações para as fraudes subsequentes, mas também destaca a audácia e a complexidade da operação. Manipulando elementos do sistema de registro e documentação do Incra, os grileiros conseguem criar uma aura de legalidade em torno de terras públicas usurpadas, preparando o terreno para as etapas seguintes do esquema”, afirma a PF.
Laranjas
A coluna também tentou contatar essas pessoas. Delas, apenas três responderam, mas nenhuma quis se identificar. A maioria, no entanto, não respondeu ou sequer possuía um número de telefone para contato.
As vítimas que falaram com a coluna, sob condição de anonimato, disseram não possuir qualquer terra, algumas sem saber sequer o que era o Incra, nem tinham conhecimento sobre a investigação da Polícia Federal. Dois dos entrevistados também afirmaram viver em Santarém (PB), localidade a mais de 500Km do local das propriedades, em tese, legalizadas em seus nomes.
Um deles, um homem de 43 anos, quando questionado se possuía alguma terra em seu nome, disse à coluna que não tinha dinheiro nem para comprar uma rede, quem dirá adquirir uma propriedade.
“Não tenho nem rede [para deitar], como é que vou ter terra? Você tá mexendo com o cara errado”, afirmou, rindo.
Segundo informações obtidas pela PF, o homem consta como proprietário originário de uma terra de 300 hectares na Gleba Belo Monte. À coluna, ele disse que não sabe onde fica o local.
Ele também negou nem conhecer outros investigados na operação da PF, inclusive Debs Antonio Rosa, apontado como líder da organização.
Em outro caso, a coluna conseguiu contato com o irmão de um dos supostos laranjas, um homem de 85 anos que, segundo seu irmão, seria aposentado do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), ganhando cerca de R$ 2 mil por mês.
“Meu irmão não trabalha, é aposentado do INSS. Não sabe nem o que é propriedade rural […] Isso não tem nada a ver conosco. Não tem a mínima possibilidade. Zero”, afirmou.
De acordo com a relação de matrícula obtida pela PF, o idoso seria o proprietário original de um terreno de 84 hectares, denominado de Sítio Campo Novo, em Gleba Belo Monte, no município de Senador José Porfírio.
Contudo, quando a localidade da propriedade foi citada, o irmão do suposto laranja afirmou que vive em Santarém, cidade a quase 600 km de Senador José Porfírio. Ele também nega conhecer outros investigados.
A coluna também foi atendida pelo filho de uma mulher que teria sido usada como laranja no esquema. Segundo a PF, ela seria a proprietária original de uma terra de cerca de 100 hectares, também em Gleba Belo Monte, em Senador José Porfírio.
Ele também afirmou que mora em Santarém, ao lado da mãe. “Eu sou CLT, minha mãe é aposentada, nunca nem saiu daqui […] Sei nem onde diabos fica isso [a cidade do Senador José Porfírio]”, disse.
Da mesma forma que os outros contratados, ele nega que a mãe seja dona da terra, nem conhece outros investigados no caso. “Minha mãe tem uma casinha aqui que meu pai deixou de herança”, afirmou. Questionado sobre a suposta venda da propriedade, ele riu.
Fases do esquema
Como mostrou a coluna, o esquema de grilagem teria pelo menos seis fases diferentes. Além da falsificação de processos no Incra, havia a etapa de inserção de dados falsos no Cadastro do Imóvel Rural, lavratura de escritura pública de compra e venda com posterior registro em cartório, transferência da matrícula e contratação de financiamento rural ou venda do imóvel grilado.
A fraude dos processos, segundo a PF, seria apenas o início do esquema, que tinha por objetivo “criar uma aura de legalidade em torno de terras públicas usurpadas, preparando o terreno para as etapas seguintes do esquema”.
Veja abaixo o passo a passo da organização criminosa, segundo a PF:
Operação Imperium Fictum
A investigação teve início em 2023 pela Polícia Federal em Altamira (PA). Segundo a corporação, o grupo atuava em uma rede criminosa organizada e com um modo de atuação “meticuloso”. Foram reveladas, por exemplo, “fraudes estruturadas” em cartórios de registro de imóveis.
Foram identificados o uso de documentos falsificados, registros baseados em títulos forjados e a atuação de agentes públicos e privados no esquema, que atuariam na “confecção de escrituras públicas falsas, a inserção de dados fraudulentos em sistemas cadastrais oficiais e a posterior comercialização de imóveis grilados”.
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Policiais federais durante operação contra fraudes fundiárias no Pará
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Carro da PF durante operação contra fraudes fundiárias no Pará
Reprodução/PF
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O esquema incluía ainda falsificação de processos no Incra, simulação de transações imobiliárias, registros indevidos em cartórios e obtenção de financiamentos rurais com garantias baseadas em propriedades griladas.
A partir das apurações, foi deflagrada em 21 de maio a primeira fase da Imperium Fictum, que mobilizou centenas de agentes e resultou no cumprimento de 39 mandados de busca e apreensão e 9 mandados de prisão preventiva, expedidos pela 4ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Estado do Pará.
Os mandados foram cumpridos no Pará e em outros oito estados. Como mostrou a coluna, além das prisões e buscas, a Justiça também determinou o sequestro e bloqueio de R$ 608 milhões dos investigados.