O governo do Peru anunciou na noite de domingo (16/3) que decretou estado de emergência na capital do país, Lima, para autorizar as Forças Armadas a atuarem em conjunto com a polícia local no combate a gangues de criminosos responsáveis por uma onda de extorsões que vem afetando praticamente todos os setores da sociedade peruana.
“Foi decidido que, nas próximas horas, será decretado estado de emergência em toda a província de Lima e na Província Constitucional de Callao, com o deslocamento de tropas das nossas Forças Armadas em apoio à Polícia Nacional”, disse o chefe do gabinete ministerial do Peru, Gustavo Adrianzén.
O estopim para o decreto foi o assassinato, na madrugada do mesmo, dia de um cantor de uma conhecida banda de cúmbia (ritmo dançante que é popular em países de língua espanhola). O crime provocou indignação no Peru e elevou a pressão sobre o governo da impopular presidente Dina Boluarte.
O cantor Paulo Flores, conhecido como “El Ruso”, de 40 anos, estava no ônibus que transportava integrantes banda Armonía 10 quando o veículo foi abordado por criminosos em uma moto após uma apresentação em San Juan de Lurigancho, um distrito no leste de Lima.
Segundo testemunhas, o vocalista foi atingido por pelo menos dois disparos efetuados por “sicários” – como são chamados os assassinos ligados a gangues em vários países da América Latina.
Após o assassinato, membros da banda afirmaram à imprensa peruana que vinham sendo alvo de organizações criminosas que exigiam altas somas de dinheiro para que o grupo continuasse a se apresentar.
O caso não é isolado. “Hoje foi Paul Flores, ‘El Ruso’ do Armonía 10. Ontem, alguém na porta de casa ou alguém dirigindo um ônibus. Amanhã, [será] outro nome na lista”, desabafou a apresentadora e cantora peruana María Pía Copello nas redes sociais. “Eles nos matam enquanto estamos vivendo e tentando progredir e aqueles que deveriam nos proteger dizem que está tudo bem. Até quando?”
Epidemia de extorsões
O caso do cantor Paul Flores é apenas o último de uma onda de crimes ligados ao que analistas vem chamando de uma “epidemia de extorsão” no Peru e que vem se intensificando nos últimos anos.
O atentado contra a banda Armonía 10 não foi nem mesmo o primeiro. Em dezembro, o ônibus do grupo já havia sido atingido por disparos na cidade de Callao. No mesmo ano, outras bandas peruanas denunciaram à imprensa que vinham sendo alvos de tentativas de extorsão. Segundos os relatos, em vários casos, os criminosos deixaram claro em mensagens que tinham detalhes sobre a rotina dos artistas e de seus familiares.
A prática criminosa também vem afetando milhares de motoristas de ônibus, empresários, pequenos comerciantes, mototaxistas e até funcionários de escolas particulares.
Em abril do ano passado, uma escola na cidade de Trujillo, a terceira mais populosa do país, foi alvo de um atentado a bomba após o diretor da instituição receber mensagens ameaçadoras que exigiam um pagamento de 2.500 dólares.
No mesmo ano, motoristas de ônibus de todo o país organizaram greves para protestar contra a falta de ação das autoridades em combater gangues que vêm extorquindo os profissionais.
“Antes vivíamos em paz, mas agora estamos arriscando nossas vidas apenas indo ao trabalho”, disse o motorista de ônibus José León, de 63 anos, ao jornal Financial Times em janeiro. “Se você não pagar, eles te matam”, completou o motorista, que ainda relatou que boa parte do seu salário tem sido direcionado para pagar gangues de extorsionários.
Em janeiro, um jornalista da cidade de Ica que havia elaborado reportagens sobre a prática de extorsão foi assassinado a tiros. No mesmo dia, em Trujillo, o gabinete de um promotor que também investigava gangues foi alvo de um atentado a bomba.
Em 2024, autoridades policiais do Peru receberam mais de 18 mil denúncias de extorsão em todo o país, bem acima dos 4.500 casos documentados em 2021. No entanto, analistas alertam que a grande maioria dos casos não é denunciada devido ao medo de retaliação.
Uma pesquisa divulgada pelo Instituto de Estudos Peruanos (IEP) em janeiro estimou que 20% dos peruanos já foram vítimas de extorsão. Em números absolutos, pequenos comerciantes são o grupo mais afetado. Motoristas de ônibus do descentralizado setor de transportes, caracterizado por centenas de pequenas empresas, também são um alvo frequentes por lidarem com dinheiro vivo.
Mas há também funcionários públicos, estudantes e até donas de casa. Uma associação de escolas e colégios particulares apontou que mais de 300 instituições de ensino do país foram alvos de extorsão em 2024 e que o número nos dois primeiros meses de 2025 já ultrapassa 400.
Expansão de gangues e fraqueza do governo
Segundo analistas, gangues e grupos do crime organizado que antes se dedicavam a outras atividades, como tráfico de drogas, passaram nos últimos anos a se concentrar na extorsão. “A extorsão fornece aos grupos do crime organizado algo de que eles mais precisam: fluxo de caixa”, apontou Ricardo Valdes, ex-vice-ministro do Interior do Peru em entrevista ao FT.
A crise de extorsão também coincidiu com a expansão da presença no Peru de grupos criminosos internacionais, notadamente da Venezuela, da Colômbia e do Equador, que se aproveitaram do vácuo deixado pela crise política que afeta o Peru há quase uma década.
Entre esses grupos está o venezuelano Tren de Aragua, que recentemente ganhou destaque nos EUA após o presidente Donald Trump determinar a deportação de 238 acusados de pertencerem à organização criminosa para prisões em El Salvador. Na semana passada, o Congresso peruano passou a designar o Tren de Aragua como uma “organização terrorista”, seguindo o exemplo dos EUA.
A polícia peruana estimou em 2023 que máfias estrangeiras operavam em pelo menos 16 dos 43 distritos de Lima, segundo site Infobae. Mas nem todos os criminosos são estrangeiros. Segundos dados da polícia peruana, entre 2019 e 2023, mais de 2.000 pessoas foram presas por extorsão no país – destas, cerca de 300 tinham origem estrangeira, segundo o site de fact-cheking Checa.pe.
Entre os grupos peruanos que se dedicam à prática está Los Pulpos, que opera principalmente em Trujillo, considerado o epicentro da extorsão no país, e que recentemente tem se expandido para o vizinho Chile.
De acordo com dados compilados pela ONG Capital Humano e Social Alternativo (CSHA), atividades criminosas movimentaram 9,8 bilhões de dólares no Peru em 2023. O garimpo ilegal de ouro é de longe a maior atividade criminosa, com 4 bilhões de dólares. Já a prática de extorsão movimenta 758 milhões de dólares.
Diante da força do crime, as deficiências do Estado peruano têm ficado evidentes. Em 2024, o orçamento do Ministério do Interior, responsável pela polícia, foi de apenas 3 bilhões de dólares. E o do Ministério da Defesa, 2,3 bilhões.
Mesmo o estado de emergência decretado no domingo não é novo. Em setembro passado, diante das atividades de grupos criminosos, o governo peruano já havia imposto um decreto semelhante em vários distritos de Lima, permitindo a convocação de militares.
Analistas apontam que a crônica fraqueza dos governos peruanos na última década criou um cenário propício para as gangues e ineficiência das autoridades. Desde 2016, o país já teve seis diferentes presidentes e quatro ex-mandatários foram presos na última década. No momento, a Presidência é ocupada por Dina Boluarte, que conta com apenas 3% de aprovação, segundo uma pesquisa divulgada em dezembro. Ela assumiu o cargo em 2022, após o antecessor, Pedro Castillo, ser destituído na esteira de uma tentativa de autogolpe.
Em setembro, mais de 20 associações empresariais do Peru denunciaram que o país estava “perdendo a batalha” para o crime organizado. “Vivemos sob o cerco do crime organizado, que assumiu o controle do país na ausência alarmante do Estado”, disseram as associações em uma declaração conjunta. “Nenhuma de nossas atividades, independentemente do tamanho ou do setor, está a salvo de extorsão”, dizia o documento.
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