O projeto idealizado por Satoshi Nakamoto deixou de ser promessa para ocupar espaço real nas carteiras de uma parcela cada vez maior do mercado financeiro global. No entanto, conforme as blockchains ganham tração e escala, a utopia de um sistema completamente descentralizado parece se distanciar a cada novo avanço regulatório. No centro desse movimento, as stablecoins assumem papel de protagonistas e levantam debates sobre até onde vai a descentralização no universo cripto.
Enquanto o Genius Act, proposta de regulamentação desse setor, avança no Congresso dos Estados Unidos — com elogios públicos do presidente do Federal Reserve (Fed), Jerome Powell —, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) soa um alerta.
Segundo a entidade, as stablecoins não garantem três princípios fundamentais do que seria um “dinheiro sólido”: unicidade (aceitação universal a valor de face), elasticidade (capacidade de cumprir obrigações no tempo certo) e integridade (prevenção a crimes financeiros).
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O recado é direcionado, sobretudo, aos Bancos Centrais, que podem estar prestes a perder o controle do próprio dinheiro em circulação diante do crescimento das stablecoins.
“As stablecoins, como forma de dinheiro sólido, deixam a desejar e, sem regulamentação, representam um risco para a estabilidade financeira e a soberania monetária”, afirma o BIS em um capítulo antecipado do seu relatório anual, que será publicado no domingo (29).
As stablecoins são criptomoedas projetadas para manter um valor estável. Normalmente a paridade é de 1 para 1 com moedas tradicionais e sustentada por ativos reais, como títulos do Tesouro americano ou ouro.
Hoje, moedas atreladas ao dólar dominam o setor, representando 99% do mercado, que já soma mais de US$ 260 bilhões em circulação.
Stablecoins: um mercado à beira de florescer
Desde a proposta original de Satoshi com o bitcoin (a primeira moeda criptografada) como “uma versão puramente peer-to-peer de dinheiro eletrônico” — permitindo pagamentos diretos entre partes, sem instituições financeiras ou intermediários —, a realidade seguiu um caminho diferente.
No dia 17 de junho, o Senado dos EUA aprovou, em votação bipartidária, o Genius Act, o primeiro marco regulatório federal voltado às stablecoins. O texto ainda precisa passar pela Câmara, mas, por ora, a expectativa é de aprovação.
O projeto estabelece diretrizes para a supervisão de emissores como Circle, Ripple e Tether, incluindo exigências sobre reservas, transparência, compliance contra lavagem de dinheiro e regras de capital mínimo.
“Stablecoins em conformidade com o Genius Act podem impulsionar a dolarização da economia global à medida que seu uso se espalha internacionalmente”, escreveram analistas da corretora Canaccord Genuity após a aprovação.O próprio BIS reconhece que a tokenização de ativos reais pode aumentar a eficiência e destravar oportunidades em áreas como pagamentos internacionais e mercado de títulos, desde que os princípios clássicos do dinheiro sólido sejam preservados.
Segundo o relatório, elas falham nesse sentido, representando um risco à estabilidade financeira e à soberania monetária.
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O fim dos Bancos Centrais?
Para o BIS, o risco vai além da regulação. Hyun Song Shin, consultor econômico-chefe da entidade, argumenta que as stablecoins não cumprem a função tradicional de liquidação provida por bancos centrais com moeda fiduciária. Muitas vezes, elas são negociadas com taxas de câmbio flutuantes, minando o princípio de “não questionamento” do valor do dinheiro.
“Singularidade é ou você tem, ou não tem”, resumiu Shin, destacando também o risco de “vendas de emergência” dos ativos que lastreiam as stablecoins em momentos de crise — como aconteceu com o colapso da TerraUSD (UST) e do token LUNA, em 2022.
A preocupação com a qualidade e a transparência do lastro também segue no radar. “Você sempre terá a dúvida sobre a qualidade do lastro do ativo. O dinheiro está realmente lá? Onde ele está?”, questiona Andrea Maechler, gerente-geral adjunta do BIS.
Hoje, a Tether domina mais da metade do mercado global de stablecoins, mas deixou a União Europeia após o bloco impor novas regras que exigem licenciamento formal para os emissores.
CBDCs e o plano de um novo sistema monetário
Segundo o BIS, a integração entre moeda de banco central, depósitos bancários comerciais e títulos públicos tokenizados pode lançar as bases de um sistema financeiro digital, ancorado nos fundamentos clássicos de confiança no dinheiro.
A estratégia se aproxima da lógica por trás das CBDCs (Central Bank Digital Currencies, ou moedas digitais de Bancos Centrais). Enquanto os EUA sinalizam o abandono da ideia de um “dólar digital” emitido pelo Fed, com o avanço do Genius Act, o BIS se posiciona no centro de um plano na direção contrária.
O BIS quer levar os bancos centrais à adoção de um “registro unificado” tokenizado, que incorpore reservas dos próprios BCs, depósitos bancários e títulos públicos. A proposta é criar um sistema em que o dinheiro do banco central siga como pilar, mas com integração global entre moedas e ativos governamentais.
O objetivo: um sistema de liquidação quase instantânea, com menor custo e maior transparência. Um sistema interoperável e resiliente, blindado contra algumas das incertezas do universo cripto.
“A tokenização de depósitos e do dinheiro do banco central permite integrar os meios de pagamento e a liquidação em uma única plataforma programável. Seu potencial para transformar o mercado de títulos e o modelo de correspondência bancária é especialmente promissor”, defendeu Shin, em nota.
Os obstáculos, no entanto, persistem — desde quem define as regras da plataforma até o grau de soberania que cada país está disposto a abrir mão.
“A realização de todo o potencial do sistema exige uma ação ousada”, resume Agustin Carstens, chefe do BIS.
O jogo pelo futuro das moedas está em andamento. E, no tabuleiro, nem sempre o mais descentralizado é o que leva a melhor.
*Com informações da Coindesk e Reuters
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