No livro Sobre a democracia, (Editora Universidade de Brasília, 2001), o autor Robert Dahl (1915-2014) afirma que “governar bem um estado exige mais do que o conhecimento. Exige também a honestidade sem corrupção, a resistência firme a todas as enormes tentações do poder, além de uma dedicação constante e inflexível ao bem público, mais do que aos benefícios de uma pessoa ou ao seu grupo” e prossegue, mencionando a famosa máxima do Lord Acton (1834-1902), dita em 1847: “O poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente” (p. 87).
Um século antes, o estadista britânico William Pitt (1759-1806) fizera semelhante observação num discurso ao Parlamento: “O poder ilimitado está apto a corromper as mentes de quem o possui”. Dahl ressalta, na sequência, que esse também era o pensamento vigente entre os membros da Convenção Constituinte norte-americana, expresso pelo representante mais idoso Benjamim Franklin (1706-1790): “Existem duas paixões que têm poderosa influência nos negócios dos homens: a ambição e a avareza, o amor pelo poder e o amor pelo dinheiro”.
Na mesma linha de pensamento, um dos “Pais Fundadores” da nação norte-americana, o experiente e influente George Mason (1725-1792) proclamou: “Da natureza humana podemos ter certeza de que os que detêm o poder em suas mãos…sempre que puderem, tratarão de aumentá-lo”.
Robert Dahl arremata as sábias reflexões com uma afirmação pertinente: “Por mais instruídos e confiáveis que sejam inicialmente os membros de uma elite governante dotada do poder de governar um estado, em poucos anos ou poucas gerações, é muito provável que abusem dele” (op. cit. p. 88).
A propósito, estas referências reforçam a necessidade de uma dose inata de desconfiança do poder que assuma formas capazes de frear o impulso opressor da violência inserida no próprio abuso do poder. Neste sentido, a história está repleta de exemplos de lutas imemoriais no plano das ideias e nos campos de batalha em favor da liberdade e da vida, valores que dão sentido à Política na luminosa definição de Hannah Arendt (1906-1975): “O que está em joga aqui não é apenas a liberdade, mas sim a vida, a continuidade da existência da Humanidade e talvez de toda vida orgânica da Terra” (O que é Política? – Fragmentos das obras póstumas compilados por Ursula Ludz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p.39).
De fato, o longo percurso histórico não chegou ao capítulo final sob o modelo da democracia liberal ocidental, como preconizou Francis Fukuyama, pensador e cientista politico, nipo-americano (1952), na sua polêmica obra O fim da história e o último homem, lançado em 1992. Tampouco sucumbiu aos regimes autoritários e ao horror dos totalitarismos. A democracia resiste e renasce. E mais: independente de prescrições ideológicas ou nuances doutrinárias, ondas e ciclos alternaram sistemas democráticos, todos imperfeitos (afinal, “se fôssemos anjos, nenhum governo seria necessário”), assentados sobre dois pilares que sustentam a ordem liberal contemporânea: o constitucionalismo e a democratização da cidadania.
Com efeito, este contexto estabelece regras de convivência inscritas no Estado Democrático de Direito que representam as formas avançadas de uma sociedade livre. Nelas, a cultura política legitima limites ao poder frente a um sistema de pesos e contrapesos (somente poder limita poder); assegura os direitos humanos, ampla liberdade de expressão, os direitos das minorias (gênero, etnia, crença religiosa), a participação do cidadão comum na vida pública, a defesa do meio ambiente; garante a transparência por meio de instituições de controle e responsabilização dos agentes públicos; promove, na prática, a educação política e o respeito aos princípios éticos nas relações sociais.
O que assusta é que todas essas conquistas civilizatórias têm sofrido ameaças e rupturas. Mudam as aparências dos métodos; a violência clássica das armas, mimetiza-se na erosão das instituições democráticas. A bem da verdade não se excluem. Podem caminhar juntas pela simples razão de que usam como matérias-primas a sensação difusa do medo, a concentração do sentimento do ódio e a instalação do caos.
O Brasil viveu e conviveu, comprovadamente pelas investigações em curso, com o desenrolar de um processo criminoso de ruptura que, por pouco, não resultou na quebra da institucionalidade da democracia mediante um golpe de estado, graças à ação eficiente dos órgãos de inteligência e a imediata reação da força legitima da coerção, elemento constitutivo do Estado Democrático de Direito.
A Democracia, confirma a experiência, é um arranjo político virtuoso. Tinha toda razão, o visionário Montesquieu quando identificou a virtude como princípio da República e o medo, princípio dos regimes despóticos. Os golpistas usaram os caminhos assegurados pelo regime democrático para atentar contra sua existência, com o agravante da manifesta e hedionda intenção de assassinar o Presidente Lula, o Vice-Presidente, Geraldo Alckmin, eleitos, e o Ministro do STF, Alexandre de Moraes. Desmascarados, os agentes do golpismo terão assegurada pela vítima, a democracia, a garantia do devido processo legal.
Por natureza e temperamento, a democracia é generosa. E sua força reside numa suposta fraqueza. Porque ela não se vinga. Sequer revida. Simplesmente, defende a si própria e a todos como o governo da liberdade dos espíritos e da justa aplicação da lei aos delinquentes políticos.
PS. Com votos de Saúde e Paz aos leitores e leitoras, voltarei, se Deus quiser, no segundo domingo do mês janeiro.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda