25 áudios obtidos pela Polícia Federal (PF) durante as investigações de uma trama golpista em 2022 mostram a relação próxima entre militares e manifestantes bolsonaristas que acamparam em frente ao quartel do Exército e deram início aos atos que culminaram no 8 de janeiro, com a depredação da Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Em um dos áudios obtidos pela corporação, o tenente-coronel Guilherme Marques de Almeida defende a uma interlocutora chamada “Renata”, a “descida” de manifestantes bolsonaristas do Quartel General (QG) do Exército para o Congresso.
O áudio foi enviado em 6 de novembro de 2022. Nele, o militar expõe sua experiência na contenção de um grande número de pessoas, e diz que, “se chegar uma massa de gente, porra, vai atropelar a grade e vai invadir. Depois não tira mais”.
“Eu acho que o pessoal podia fazer essa descida aí, né, e ir atravancando mesmo. Porque, porra, a massa humana chegando lá, não tem PM [Polícia Militar] que segure”, disse.
Em outro áudio, também enviado a Renata no mesmo dia, ele afirma que faz parte de diversos grupos civis, onde fala aos participantes que acampar em frente ao Quartel General (QG) “não adianta”, e que o ideal seria protestar em frente ao Congresso.
O argumento de Marques de Almeida, que estaria tentando influenciar os manifestantes, era de que as Forças Armadas somente agiriam por “iniciativa de algum Poder”.
“A gente tem que ter um outro mecanismo de pressão, que é um mecanismo de pressão econômico, que é a greve, a paralisação, que já tá anunciada. Só que aí leva um tempo ali para, pra isso se fortalecer”, disse.
Na época, Marques de Almeida estava lotado no Comando de Operações Terrestres do Exército (Coter). Segundo a PF, ele teria usado sua “expertise em operações psicológicas” para atuar no Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eletrônico de Votação, disseminando conteúdo falso sobre o sistema eleitoral brasileiro.
Para os agentes, esse tipo de conteúdo seria essencial para dar suporte ao “golpe de Estado em andamento”.
“Dentro do seu conhecimento de operações psicológicas, o investigado trabalha com o conceito de “mecanismo de pressão econômico” para pressionar o Poder Legislativo, ressaltando que as Forças Armadas não agiriam por conta própria, necessitando que fossem acionadas por um Poder constituído, que na sua visão, seria o Legislativo”, diz a PF.
Quatro linhas da Constituição
Em outro áudio obtido pela corporação, o tenente-coronel aparece falando sobre a possível necessidade de sair das “quatro linhas” da Constituição para evitar uma suposta dominação.
“Então, esse é o nosso mal, cara. A gente não sai das quatro linhas. Vai ter uma hora que a gente vai ter que sair, ou então eles vão continuar dominando a gente”.
O termo foi muito usado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), especialmente durante seu governo, para justificar que ele estaria agindo dentro da legalidade, mesmo sendo acusado, por vezes, do contrário.
Em áudio enviado em 2 de novembro de 2022 a um interlocutor não identificado, Marques de Almeida elenca uma série de coisas que “eles”- sem ficar claro a quem se referia – fizeram fora das quatro linha, o que justificaria uma intensificação dos atos para frear essas ações.
Dentre os exemplos, o militar cita “cerceamento de liberdade, censura prévia, prender jornalista, deputado” e o inquérito das fake news, conduzido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes e que mira diversos aliados de Bolsonaro.
Recrudescer as manifestações
Em outro áudio, de 23 de novembro de 2022, dessa vez do coronel José Sávio, o militar, que estaria em contato com manifestantes, afirma que está dando a orientação para “recrudescer” os movimentos.
“A orientação que nós estamos dando aqui é para recrudescer. Agora é aumentar, melhorar a qualidade e recrudescer”. Em seguida, diz que estaria indo para o local, possivelmente o QG do Exército, segundo a PF, para “ajudar o pessoal”.
Sávio também foi o responsável por avisar o general Mario Fernandes, dias antes, que os manifestantes estavam com a intenção de “marchar” até a Esplanada dos Ministérios, mas que só sairiam do QG caso tivessem escolta do Exército.
Fernandes, por sua vez, avalia que uma caminhada até a esplanada seria arriscada, dado o risco de haver “infiltrados” que poderiam tumultuar a manifestação. No entanto, disse que achava a marcha “excelente” para pressionar o Legislativo e o Judiciário.
No relatório final sobre o caso, a PF implicou a relação próxima entre os militares e manifestantes.
“Os elementos de prova evidenciam uma ação coordenada entre os integrantes do grupo investigado, com a finalidade de direcionar os manifestantes conforme seus interesses que naquele momento, no início do mês de novembro de 2022, era pressionar o Congresso Nacional e o STF para adotarem alguma medida que revertesse o resultado das eleições presidenciais”, diz a PF.
Como mostrou a coluna, outro episódio que também coloca a relação entre a caserna e os manifestantes em evidência é quando o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente Coronel Mauro Cid, afirma que uma carta assinada pelos comandantes das Forças Armadas respaldaram as manifestações.
Denúncia da PGR
Na semana passada, a Procuradoria Geral da República (PGR) ofereceu denúncia contra 34 pessoas, dentre elas 24 militares, por golpe de Estado, organização criminosa, entre outros crimes. Estão incluídos na lista o ex-presidente Jair Bolsonaro, Mauro Cid, Walter Braga Netto, Mario Fernandes, Marques de Almeida, entre outros.
Segundo a PGR, os atos do 8 de Janeiro foram o “ato final” de uma sequência de acontecimentos que compuseram a “trajetória dos crimes”, incluindo os acampamentos em frente a quartéis.
“Apesar disso [inexistência de provas contra as urnas], a acusação de fraude persistia. Esta era a forma de manter a militância do Presidente da República animada, pedindo intervenção militar, em famigerados acampamentos montados em frente a quartéis do Exército em várias capitais do país”, diz o documento.
Ainda segundo a procuradoria, os indícios de prova levantados pela PF mostram o enlaçamento entre a ala militar e os civis que manifestaram ao longo de dias em prol de intervenção militar.
“Evidenciou-se, assim, que os movimentos populares eram encorajados por ações previamente calculadas da organização criminosa. As manifestações realizadas não eram orgânicas, os locais escolhidos não eram acidentais, mas fruto de direcionamento pelos denunciados, especialmente pelos militares com formação em Forças Especiais, que estavam em constante interlocução com as lideranças populares”, diz a denúncia.