Reza a história que, no final da década de 70, uma revista terá publicado um anúncio singelo: “Procura-se tipos macho: devem dançar e ter bigode”. Os Village People eram, até então, um projeto de sucesso marginal liderado por um produtor, Jacques Morali, e um vocalista, Victor Willis. O propósito era alargar a formação com algumas personagens alinhadas com a cena disco que então tomava conta da noite gay nova-iorquina. O resultado do casting tornou-se um sucesso de massas: a acompanhar Willis, o polícia, passaríamos a ter um bombeiro, um índio, um canalizador, um motard, um servente e um cowboy.
Com uma estética saída das ilustrações de Tom of Finland, o novo elenco da banda não escondia ao que vinha, remetendo para um cruzamento explícito entre estereótipos da identidade masculina norte-americana e a sua transmutação em fantasias homoeróticas. A ausência de subtileza visual, acompanhada pelo denominador mínimo do disco sound, catapultou o projeto para as tabelas de vendas e para uma certa ubiquidade mediática. O segundo álbum, sintomaticamente intitulado Macho Man e, depois, em particular, YMCA, com a sua coreografia criada espontaneamente numa apresentação televisiva, persegue-nos até hoje.
Talvez o termo perseguição seja agora ainda mais apropriado: YMCA, antes apenas uma manifestação que trazia à superfície, com ligeireza doméstica e pueril, um universo subterrâneo que habitava Greenwich Village (zona franca da cultura gay, então na ressaca dos motins de Stonewall), transformou-se, pela mão de Trump, em hino do movimento MAGA.
Há, de fato, um estranho caminho que vai dos Village People à atual coligação de interesses contraditórios entre oligarcas do tecnofeudalismo, vestidos sombriamente, e tradicionalistas neoreacionários, nascidos das cinzas do Tea Party. Mas poucos momentos tornam tão visível a força dessa coligação como quando, num dos eventos da longa tomada de posse, Trump, em palco com uma versão reformada da banda, arrisca uns tímidos movimentos de dança, ao som de YMCA, perante uma plateia de anglosaxónicos brancos e protestantes.
Podemos tomar esta apropriação de um hino gay apenas como um momento de divertimento, desprovido de sentido político-cultural. Temo que não seja assim. Logo a abrir a canção surge um apelo aos “jovens rapazes” para “encontrarem muitas formas de se divertirem”. Ora, como António Guerreiro recordou na semana passada no PÚBLICO, há todo um imaginário preenchido por fantasias de dominação masculina que ajuda a compreender a nova modalidade de poder político-financeiro, inscrita, uma vez mais, nos corpos e nos afetos – e, acrescento, no divertimento. Não estamos face a uma novidade histórica, basta recuperar as descrições particularmente gráficas de Jonathan Littell em As Benevolentes.
Para compreendermos a sinistralidade moral a que temos assistido, é incontornável refletir sobre a preocupação MAGA com a masculinidade de balneário e a ideia de que os homens necessitam de competição e de alguma dose de violência para não se sentirem perdidos. Mark Zuckerberg, em registo pós-choninhas, recorda isso mesmo num curto vídeo em que, enquanto alinha pela nova ortodoxia libertária na gestão de conteúdos online, se rebela contra a falta de “energia masculina” nas redes sociais e o consequente risco de “castração”. Paradoxalmente, na sua duplicidade sexual e comicidade, os corpos másculos dos Village People ajudam a cimentar hipocritamente a coligação que sustenta Trump, que tem no ressentimento masculino o seu elo. Quem poderia antecipar?
Village People – Y.M.C.A
Village People – Campanha de Donald Trump