Javier Milei deve estar enfurecido, ainda que o adjetivo passe longe do baixo calão que o presidente argentino costuma usar quando contrariado. Depois de lamber as botas de Donald Trump – na posse, antes e depois dela -, Milei viu seu ídolo escolher a Venezuela como primeiro destino externo de uma delegação oficial de seu governo, chefiada pelo líder republicano Richard Grenell. Uma traição ao único presidente sulamericano aliado de primeira hora.
Oficialmente, os Estados Unidos continuam a afirmar que o opositor Edmundo González venceu Nicolás Maduro nas eleições presidenciais realizadas no final de julho de 2024. Trump ainda não alterou esse status. Ainda. Quando a moeda petróleo fala mais alto, ser ou não uma ditadura pouco importa. Prova disso é que a mesma Casa Branca que correu para dizer que a visita não significava apoio ao ditador divulgou imagens da recepção amistosa de Grenell no Palácio Miraflores.
Não se pode atribuir ao acaso, muito menos a imigrantes criminosos – como Trump quer fazer crer -, o fato de a missão Venezuela ter ocorrido na sexta-feira, um dia antes de o presidente americano iniciar a escalada de tarifas contra a inimiga China e os (ex) parceiros Canadá e México. Do primeiro, os Estados Unidos compram 16% do petróleo bruto e 14% do gás natural que consomem. Com o segundo, cuja fronteira é conhecida como o “corredor econômico mais rico da Terra”, tem transações que respondem por US$ 800 bilhões. O México depende do gás americano para sobreviver, mas exporta de 700 a 900 mil barris por dia de óleo cru para o vizinho.
A solução Venezuela é sopa no mel para os dois países. Assegura petróleo para os Estados Unidos a preço de pechincha em troca da garantia de sobrevida ao ditador. De quebra, Trump está se gabando de ter libertado seis ativistas americanos presos nas masmorras venezuelanas. Por sua vez, Maduro, contestado e isolado por roubar fragorosamente sua reeleição, se reinsere no tabuleiro global pelas mãos do superpoderoso dono do mundo. Um “acordo de canalhas”, como bem definiu o jornalista Demétrio Magnoli, que esbofeteia democracias do planeta, muitas delas inspiradas no modelo dos Estados Unidos.
Para Milei sobra mais do que desconforto ao se ver preterido por Trump exatamente em favor de um país com o qual cortou relações após as eleições fraudadas por Maduro. Desde setembro, a embaixada argentina em Caracas só não foi completamente lacrada por estar sob a custódia do Brasil. O presidente argentino tem feito todo tipo de aceno para que Trump olhe para ele. Ameaçou sair do Mercosul, diz que vai imitar o chefe ianque e abandonar a OMS. E Trump, nada, nem piscou para ele. Preferiu namorar o inimigo Maduro, o que também cria constrangimentos para outros asseclas à direita, como o ex Jair Bolsonaro e os seus.
O Brasil segue incólume. Deve isso à sua diplomacia, que sabe se mexer bem entre cristais, e ao presidente Lula, que tem seguido os aconselhamentos diplomáticos à risca, não ultrapassando sinais. Sobre Maduro, uma pedra em seu sapato, nada disse nem antes nem depois da visita do enviado de Trump. Prudência necessária e elogiável.
Mas o chicote de Trump chegará. Por ora, suas ameaças mais recentes têm a Europa como destino. O Brics, presidido pelo Brasil, tem uma pauta na contramão trumpista, com itens como governança global inclusiva e financiamento para combater as mudanças climáticas, além de diversificação de moedas nos negócios, que Trump já adiantou que não vai tolerar.
Trump é devastador – e mau. Para ele, perseguir, intimidar, subjugar, parece diversão. Não basta deportar, é preciso fazê-lo pisando nos “cucarachas”. Não basta se opor ao discurso identitário – muitas vezes excessivo, é fato -, tem de expurgar homossexuais, trans e pessoas com deficiência de seus empregos, da legalidade, da vida cotidiana. Para ele é impositivo “limpar a área”, expressão que usou para que palestinos não voltassem à Faixa de Gaza pós acordo de cessar fogo. Uma cartilha eugenista só vista no III Reich.
Sua capacidade de destruição é fenomenal – uma bomba atômica. Em pouco mais de 10 dias conseguiu detonar décadas de pactos civilizatórios, o respeito aos países e às pessoas. Nada construiu, nem mesmo acenou nesse sentido – só destruiu. E como destruir é fácil e rápido, passa a falsa impressão que fez muito. Espalha medo e debocha disso. Sob Trump ninguém está seguro. Ou melhor, só os muito ricos, brancos e amigos do imperador têm licença para sorrir.
Fora o ouro negro de Maduro, que vale muito para Trump, Argentina, Brasil e os demais países da América Latina permanecem no mesmo patamar de desdém do americano: “eles precisam de nós mais do que nós precisamos deles”.
Mary Zaidan é jornalista