São Paulo — Médicos que encaram de perto o rastro de destruição deixado pelos acidentes de trânsito dizem que a liberação do mototáxi em São Paulo pode levar a um aumento expressivo no número de atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS), uma tragédia com reflexos para toda a sociedade. A atividade foi suspensa na capital paulista por liminar concedida pela Justiça na segunda-feira (27/1)
Diretor da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), Aquilla Couto afirma que é possível estimar o impacto da adoção do mototáxi no sistema de saúde de uma grande cidade. “Podemos usar o exemplo de Belo Horizonte, que, nos primeiros seis meses de funcionamento do serviço, registrou um aumento de 22% de internação dos leitos se comparado com a média nacional”, diz, citando também que as motos são 28% da frota nacional e respondem por 55% das internações no SUS. “Usando ou não o mototáxi, todos seremos impactados”, afirma.
Professora titular de fisiatria da FMUSP e idealizadora da Rede Lucy Montoro, especialista nesse tipo de trauma, Linamara Rizzo Battistella faz uma série de questionamentos. “Como é que a gente garante não terminar com o benefício ou reduzir a oferta de serviços em função do grande número de acidentes? Como é que a gente explica isso para a sociedade? Eu vou oferecer menos, porque eu gastei todo o meu recurso salvando vidas, ou atendendo vidas que até não foram salvas, em função do aumento do número de acidentes”, diz . “Não se pode discutir que o risco de acidente existe e é muito maior num motociclista e pior ainda no motociclista com seu passageiro”, afirma.
A avaliação de Linamara é embasada em sua experiência na Rede Lucy Montoro, que tem números expressivos sobre esse tipo de problema. Entre janeiro e setembro do ano passado, por exemplo, 50% das vítimas de acidente de trânsito atendidas nas unidades da capital foram motociclistas. Nesse grupo, 88% dos casos aconteceram com homens e 76% tinham até 45 anos, sendo que 54% se tornaram paraplégicos ou tetraplégicos e 26% sofreram amputação.
“De uma maneira muito objetiva, a adoção do mototáxi na rede pública de saúde pode significar um aumento catastrófico dos gastos em saúde”, diz Linamara.
Segundo a especialista, São Paulo não está pronta para o mototáxi. “Nosso sistema viário não está preparado. E não temos ainda uma educação no trânsito, seja do motorista, seja do pedestre, que garanta que a adoção de uma medida como essa não vai se colocar como um grande prejuízo para muitas vidas, vidas jovens e, portanto, com muito sofrimento para as famílias”, diz.
Mesmo em um cenário utópico, com São Paulo sendo totalmente diferente do que é hoje, o mototáxi ainda colocaria passageiros em risco. “Se nós imaginássemos uma cidade absolutamente disciplinada, onde ninguém ultrapassa a velocidade máxima, todo mundo viaja com capacete, ainda assim nós teríamos algumas dificuldades. Porque, no desequilíbrio do motociclista, vai junto o passageiro”, diz Linamara.
Segundo Linamara, é fundamental que o poder público não perca de vista seu principal papel nessa discussão. A especialista tem uma resposta para quem diz que usar ou não o mototáxi é uma questão individual.
“Não pode ser uma decisão individual, não pode. Porque essa é uma decisão que acaba impactando toda a sociedade. E, portanto, se o risco existe, cabe aos mecanismos legais esclarecer, e isso é feito com muita pesquisa, com muita observação, esclarecer, regulamentar e, quando necessário, proibir”, diz.
A professora afirma que o Estado não pode ser penalizado pelos custos de perda de uma vida e pelos custos de saúde. “O Estado não pode permitir que uma decisão individual impacte no bem-estar do outro. A moto pode significar a perda de uma outra vida, seja do passageiro, seja do próprio condutor ou de um terceiro. Portanto, quando existem tantos elementos em jogo, o Estado precisa intervir e colocar um sistema regulatório”, afirma.
A idealizadora da Rede Lucy Montoro também explica que, do ponto de vista da mobilidade urbana, mototáxi não é uma solução para grandes cidades como São Paulo. “A mobilidade se faz presente de forma mais amigável onde existem os transportes públicos de grande impacto, como são os metrôs, os trens de superfície, como é o próprio transporte sobre rodas”, diz.
Risco para o garupa
Linamara diz que mototáxi em uma cidade como São Paulo é uma “equação difícil de controlar”. “Porque o motociclista carrega o passageiro e termina por se distrair também com o próprio cuidado que ele tem que ter com o garupa em uma curva, em uma subida ou no meio de um grande trânsito. Por outro lado, esse passageiro fica totalmente desguarnecido”, diz.
Para a professora da USP, equipamentos de proteção não são suficientes para proteger a coluna, ossos da bacia e dos membros superiores, deixando os passageiros ainda mais vulneráveis e em risco o tempo todo.
A médica diz que o risco aumenta porque o condutor não consegue dar conta nem da atenção no trânsito e nem do cuidado com o passageiro.
“Ele [garupa] não tem as proteções e o sistema de segurança que o próprio motociclista tem. O apoio do motociclista em relação aos membros superiores no guidão dão a ele uma sustentação de tronco que o próprio passageiro não tem. O passageiro está seguro pela pressão que ele tem nos joelhos em relação ao assento e pela sua posição estática”, diz. “O movimento dele, inclusive, desequilibra o próprio motoqueiro. Numa situação de trânsito intenso ou de colisão, o risco de quem está na garupa acaba sendo maior do que o risco de quem está conduzindo a motocicleta”.