Todo mundo, em alguma medida, se considera especial. É duro ouvir o contrário. Seja no amor — ou na guerra comercial deflagrada por Donald Trump contra o mundo.
Está enganado quem acredita que, buscando uma posição intermediária, vai poder se beneficiar duplamente da disputa geopolítica entre Estados Unidos e China. A avaliação é de Michael Every, estrategista global do Rabobank.
Mas não é só isso. Quem tentar esse caminho será pressionado a adotar uma posição. E isso inclui o Brasil.
“Ouço a mesma coisa em todos os países com os quais trabalho”, disse Every ao Seu Dinheiro.
“Em todos os lugares onde tenho clientes, eles dizem: ‘somos nós que temos condições de alcançar um meio-termo’. E eu digo: ‘Não, não, você não é especial e não tem como alcançar um meio-termo’.”
E a amostragem de Every é grande. Fundado na Holanda há mais de 120 anos, o Rabobank está presente em 35 países, onde opera quase 120 bilhões de euros (R$ 775 bilhões) em contratos de empréstimos aos setores de alimentação e agropecuária.
Para o estrategista é um erro a direção de uma empresa ou o governo de um país acreditar que, diante do aprofundamento da guerra comercial, será possível lucrar vendendo para os Estados Unidos e para a China.
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Mesmo a contragosto, será necessário escolher um lado nessa disputa.
Convencido de que os sucessivos déficits comerciais são o principal obstáculo entre os EUA e uma “era de ouro” da economia norte-americana, Trump força um reequilíbrio na tentativa de tornar o saldo norte-americano superavitário.
No primeiro segmento da entrevista, publicado ontem, Every qualificou a guerra comercial como uma tentativa dos Estados Unidos de mudar as regras de um jogo ainda em andamento para não sofrer uma derrota definitiva.
Segundo o estrategista do Rabobank, é preciso entender que Trump tem uma visão de mundo mercantilista.
“Ele é um empresário. Empresários são, por natureza, mercantilistas. É uma questão de concorrência. Você vende menos, eles vendem mais, você está perdendo. Todo empresário pensa assim. E é assim que Trump vê o comércio internacional”, afirma ele.
Acontece que Trump não é o único mercantilista no pedaço.
“Todos falam sobre a ordem mundial baseada em regras, inclusive na China, mas ninguém fala que todo o sistema econômico é baseado em participação de mercado, não em lucratividade. Porque quando você controla 80% de um mercado, você controla esse mercado, o acesso aos bens”, afirma Every.
“A China está claramente nos beneficiando com bens baratos e, ao mesmo tempo, controlando toda a cadeia de suprimentos para que, no futuro, possa definir os termos que quiser”, disse ele.
Não à toa, o principal foco da guerra comercial de Trump é a China.
O problema é que a decisão tomada pela Casa Branca praticamente anula qualquer possível margem de manobra para quem tem relações comerciais tanto com Washington quanto com Pequim.
É possível adiar, empurrar com a barriga, mas não escapar. A própria China já advertiu seus aliados para que pensem duas vezes antes de fechar com os EUA.
Nesse sentido, o Brasil encontra-se em uma encruzilhada bastante delicada, especialmente no que se refere ao agro.
Em meio à sobretaxação acompanhada de retaliações, EUA e China chegaram a tarifas que, de lado a lado, superam os 100%. Em alguns casos, passam dos 200%.
Na prática, os dois países vivem um momento de embargo comercial de facto, enfatiza Every.
À primeira vista, parece um bom negócio para o Brasil.
Nas últimas semanas, sem acesso ao mercado norte-americano, os chineses aumentaram substancialmente, por exemplo, a compra de soja brasileira.
De um lado, os agricultores norte-americanos se ressentem por pagarem parte importante da conta da guerra comercial de Trump.
De outro, os chineses precisam do grão. “A China não pode se dar ao luxo de permitir uma escassez de alimentos, e os Estados Unidos sabem disso”, afirma Every.
Segundo ele, dificultar o acesso de Pequim a energia e alimentos é uma maneira de pressionar a China a partir de uma perspectiva política real a um custo baixíssimo.
Nessa hipótese, diz Every, bastaria pagar uma indenização aos agricultores norte-americanos.
“Você compra a safra deles, guarda em um armazém, e a China não assina um cheque. Fácil”, afirma.
Mas e quanto ao Brasil?
Na hipótese de o Brasil querer continuar vendendo soja para a China, os EUA têm meios eficazes de dissuasão.
Em um extremo benevolente apontado por Every, Washington pode comprar a safra dos produtores brasileiros, estocar os produtos e financiar o desenvolvimento de indústrias capazes de produzir bens demandados pelos norte-americanos. Com a contrapartida de também comprar produtos dos EUA, claro.
No outro extremo, Every lembra que Trump acaba de resgatar a Doutrina Monroe, uma política do século 19 por meio da qual todo o continente americano é considerado um “quintal dos Estados Unidos” por Washington.
“Você nem precisa fazer nada com a China. Basta para os Estados Unidos colocar um submarino ou estacionar um porta-aviões na costa do Brasil e dizer: ‘Não tente navegar para a China’. Nada acontece. O que você vai fazer? Tentar romper um bloqueio?”, especula Every.
O estrategista do Rabobank deixou claro que se trata de uma hipótese extrema, mas chamou a atenção para o fato de a América Latina estar longe o bastante da China para que a potência asiática possa projetar sua influência em uma situação assim.
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