Em 1960, quando Brasília era apenas um canteiro de obras, pioneiros acreditaram na construção da nova capital e se lançaram ao desconhecido. Eram operários, engenheiros, médicos, comerciantes e educadores – entre outros -, que ajudaram a transformar a capital em uma cidade viva, pulsante. Sessenta e cinco anos depois, os filhos deles preservam com orgulho o legado dos pais e ajudam a construir a Brasília do futuro.
Ao mesmo tempo que reverencia a memória dos pioneiros, Mauro Porto mantém o compromisso com o desenvolvimento da cidade
“Minha relação com a cidade é um reflexo do legado do meu pai. Brasília foi construída com muito sacrifício e trabalho, e temos de valorizar isso”, afirma o advogado Mauro Porto, filho de Edson Porto, um dos primeiros médicos do Distrito Federal.
A cineasta Tânia Maria Fontenele Mourão sente responsabilidade semelhante quando se refere à mãe, a educadora Maria Inês Fontenele Mourão, uma das primeiras professoras da capital. “Minha mãe não apenas ensinava, ela formava cidadãos conscientes. Considero muito importante manter esse princípio”, aponta.
Leia também
Distrito Federal
Veja programação completa das comemorações dos 65 anos de Brasília
Conceição Freitas
Clarice entrevista Niemeyer sobre Brasília e ele desconversa
Distrito Federal
Brasília mais florida: veja regiões que ganharão canteiros ornamentais
Distrito Federal
Cine Brasília vai ganhar anexo planejado por Niemeyer com cinemateca
Atual administradora do restaurante Tia Zélia, Márcia Oliveira da Costa também celebra o talento, o cuidado e a resistência da mãe, Maria de Jesus, que criou o famoso ponto de encontro na Vila Planalto. “O que ela plantou é para crescer e florescer”, avalia Márcia, ao lado da mãe.
Eduardo, Bráulio e Guilherme, respectivamente filhos e neto de Hely Walter Couto, se sentem igualmente honrados por cuidar dos negócios da família. No caso deles, a loja Pioneira da Borracha, uma das mais tradicionais da cidade.
Maria Luísa e Lourivaldo Marques: pai e filha celebram a cidade
Filha de Lourivaldo Marques, dono da primeira banca de jornal de Brasília, Maria Luísa Marques se reconhece na coragem e na persistência do pai. Aqui, ela cresceu, se formou, virou professora e ajudou a educar gerações de crianças. “Meu pai contribui do jeito dele, ajudando na educação das crianças. Minha irmã e eu, como professoras, também formamos gerações”, avalia Maria Luísa.
Brasília, quem te viu e quem te vê
Marilda e o filho Mauro: respeito e cuidado pela história dos que construíram Brasília
Mauro Porto, filho de Edson Porto, médico pioneiro que chegou à capital em 1956, cresceu entre os pilotis da cidade. Nascido em 1971, ele lembra com carinho da dedicação do pai à profissão e à Brasília. “O maior legado de meu pai é o cuidado. Não só com os pacientes, mas com o povo de Brasília. Ele sempre trabalhou com carinho e atenção à comunidade”, lembra o brasiliense.
A viúva de Edson, Marilda Porto, recorda dos primeiros dias do casal na cidade. “Quando cheguei, em 1958, Brasília era só um canteiro de obras. Não tinha nem grama, mas todos eram muito jovens e animados, o que tornou a experiência única”, afirma.
Marilda Porto chegou ao DF antes mesmo da inauguração da nova capital
Ela relembra que, apesar de estar longe da família, se sentia acolhida pelos outros pioneiros e feliz ao lado do marido. “O hospital era como se fosse nossa segunda casa. O Edson era muito dedicado e, mesmo sendo diretor, dava plantão e estava disponível para atender a todos.”
Mauro, que se formou em direito, destaca que o caráter do pai 0 influenciou na responsabilidade com a cidade. “O meu trabalho e as minhas ações são para manter viva a essência de Brasília, cidade construída com tanto esforço e união. Para mim, é importante continuar esse legado de cuidado, de valorização da nossa terra e história”, afirma.
Edson Porto foi um dos primeiros médicos da cidade
Marilda compartilha o sentimento do filho. “Meu marido sempre dizia: ‘Brasília, quem te viu e quem te vê.’ Ele sentia uma satisfação imensa de ver a cidade se consolidar. Tinha muito orgulho de Juscelino Kubitschek, que soube mobilizar os trabalhadores com entusiasmo para realizar o impossível”.
Continuar, crescer e florescer
Perto dos contornos modernistas da Esplanada dos Ministérios, está a Vila Planalto, com características única. No antigo acampamento de pioneiros, um restaurante decorado com objetos antigos tenta manter lembranças da construção da capital vivas.
Proprietária do Tia Zélia, a baiana Maria de Jesus se orgulha de ser uma das primeiras cozinheiras da cidade. Ela chegou à Brasília nos anos 1960 em busca de uma vida melhor e aqui ganhou o nome pelo qual se tornou conhecida.
Maria de Jesus Costa, a tia Zélia, criou restaurante de culinária brasileira na Vila Planalto
Tia Zélia conta que começou a gerenciar seu negócio com um caderninho de anotações. Hoje, o espaço é conhecido e disputado, especialmente aos sábados.
Aos 71 anos, a cozinheira continua sendo o coração do local, considera a culinária como uma arte e segue fiscalizando o preparo dos pratos. “A comida é amor e sentimento”, diz ela, lembrando que, mesmo nos dias difíceis, a qualidade e o acolhimento sempre foram prioridades no restaurante.
Márcia com a mãe e a equipe de cozinheiras do restaurante Tia Zélia
Márcia Oliveira da Costa, 46 anos, cresceu vendo a luta da mãe e, em 2003, quando se mudou para a Vila Planalto, encontrou o próprio caminho na cozinha. “Foi aqui que aprendi a cozinhar, a amar os temperos e os pequenos detalhes”, diz ela, que administra o restaurante atualmente.
A filha encara como compromisso de vida manter a tradição gastronômica iniciada pela mãe. “O que ela plantou é para continuar, para crescer e florescer”, afirma.
Márcia considera Brasília como a cidade que lhe deu tudo e destaca a qualidade de vida proporcionada pela estrutura urbana. “Brasília é o lugar onde plantamos nossa semente e na qual, um dia, espero colher frutos maiores”, diz a filha de tia Zélia, destacando o carinho com que a cidade abraça tanto os pioneiros quanto os novos moradores.
Modernidade e inclusão
Maria Inês Fontenele Mourão foi uma das pioneiras que ajudaram a transformar os planos de JK em realidade. Chegou à Brasília com apenas 22 anos e se dedicou à educação, lecionando na Escola Industrial de Taguatinga e formando gerações de brasilienses.
Maria Inês e Tânia, em foto reproduzida do álbum de família
A filha de Maria Inês, Tânia Maria Fontenele Mourão, considera como sua maior herança materna a visão de mundo que integra o valor da educação, o respeito à natureza e a luta pelos direitos das mulheres.
“Minha mãe mostrava às crianças o valor do que elas tinham em casa: o cerrado, as cores, as pedras…Ela não apenas educava, mas também formava cidadãos”, afirma Tânia. Ela explica que a pioneira é uma das formuladoras da proposta de educação pública e de qualidade, tão essencial para a construção da identidade brasiliense.
Tânia enaltece a infância e o ambiente familiar. “Meus pais vieram de uma pequena cidade do Ceará e, quando chegaram à Brasília, o cenário era de total construção, tanto da cidade quanto de suas próprias vidas”, afirma.
Tânia Fontenele é diretora do documentário Poeira e Batom, que aborda a história das mulheres na construção de Brasília
O legado de Maria Inês também se reflete na trajetória de Tânia, que conserva a luta da mãe por uma sociedade mais justa e solidária. “Vi minha mãe se preocupar não só com a educação, mas com a vida das mulheres em Brasília. Ela foi uma das primeiras a fundar uma associação de mulheres de negócios, buscando melhorar a participação feminina na vida pública”, conta.
As causas relacionadas à igualdade de gênero foram inspirações para a filha, que, ao longo de carreira, se tornou cineasta e desenvolveu projetos como o filme Poeira e Batom, que aborda a história das mulheres na construção de Brasília.
“Brasília foi construída com um ideal de modernidade e inclusão, e acredito que é nossa responsabilidade continuar esse trabalho. É preciso reforçar o cuidado com o meio ambiente, a educação e as questões sociais”, resume Tânia.
“Fui um herói, graças a Deus”
Hely Walter Couto chegou a Brasília antes mesmo da cidade ser oficialmente inaugurada. Desde então, se tornou um símbolo de coragem e perseverança. Ele fundou a Pioneira da Borracha, uma das lojas mais tradicionais da capital.
A trajetória de Hely é marcada pela busca constante por soluções para as necessidades da população, o que contribui para o sucesso de seus negócios e o desenvolvimento da cidade.
Para seus filhos, Eduardo e Bráulio Couto, o legado do pai é, principalmente, a capacidade de inovação. Eduardo lembra com carinho a decisão do pai de deixar Belo Horizonte em busca de um futuro melhor em Brasília. “Acho que ele teve muita coragem e sabedoria de apostar em Brasília, pois ainda não se sabia se a cidade iria vingar”, afirma.
Hely Walter Couto junto aos filhos, Braúlio (E) e Eduardo, e o neto Guilherme
O neto de Hely, Guilherme Ferrari, destaca a participação do avô na vida comunitária da cidade. “Meu avô sempre buscou ser um herói para as pessoas, seja oferecendo brinquedos durante o Natal ou colchões para os candangos”, conta Guilherme, representante da terceira geração à frente da Pioneira da Borracha. “Quero manter esse legado, gerando soluções e criando empregos”, afirma o neto.
Hely, que hoje tem 99 anos, olha para a própria trajetória com sentimento de realização. “Fui um herói. Ajudei muita gente”, diz ele, refletindo sobre sua jornada em Brasília. O entusiasmo permanece, apesar da idade avançada, e ele transmite com orgulho o legado que construiu, esperando que seus filhos e netos continuem com o trabalho.
Para os herdeiros, não importa apenas a longevidade do negócio familiar, mas a contribuição contínua para o crescimento da capital. “O futuro de Brasília segue promissor, e queremos estar juntos nessa evolução, ajudando a cidade a crescer”, conclui Guilherme.
Paixão por Brasília
Lourivaldo Marques chegou à Brasília em 1960 e estabeleceu a primeira banca de jornal do DF em cima de um simples caixote. Sua trajetória, marcada por perseverança e trabalho árduo, influenciou a vida de muitos brasilienses.
Maria Luísa, sua filha mais velha, não hesita em falar sobre o pai, enfatizando a criatividade e a força de vontade dele. Para ela, o principal exemplo do pai é a capacidade de realizar sonhos — um ensinamento que ela seguiu em sua própria carreira como professora e empresária.
“Meu pai nunca perdeu o otimismo em relação ao futuro de Brasília. Para ele, a cidade ainda guarda um grande potencial, e seu olhar permanece atento às possibilidades de inovação”, comenta a professora.
Maria Luísa, que também é empresária, elogia a persistência e a capacidade de inovação do pai
Para Lourivaldo, o segredo do sucesso está em persistir, e sua banca de jornal, que permanece em funcionamento, é a prova de que a dedicação ao trabalho e à inovação geram frutos duradouros.
A história dele é, de certa forma, uma metáfora sobre a própria história de Brasília, uma cidade que também começou do zero e que continua a se reinventar. “Ser desbravador não é para qualquer um”, afirma Maria Luísa, que, ao longo de sua vida, também teve que recomeçar diversas vezes.
Lourivaldo, em frente a banca que mantém até hoje
Durante a entrevista, Lourivaldo expressou seu amor pela cidade com uma emocionante declaração: “Brasília é amada por ti, por ele, por elas, por toda essa multidão de fãs. Eu declaro em uma só voz meu amor por essa cidade e por aqueles que partiram deixando muita saudade.”