A desconfiança de amplos setores do mercado financeiro em relação ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não é fruto de preferências político-ideológicas, mas de expectativas pessimistas sobre o futuro da economia brasileira. A afirmação é de Henrique Meirelles, de 79 anos, presidente do Banco Central (BC) nos dois primeiros mandatos de Lula no Planalto e ministro da Fazenda durante o governo de Michel Temer (2016-2018), após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Em entrevista ao Metrópoles, Meirelles avalia que, entre as maiores preocupações dos agentes econômicos neste momento, estão a expansão fiscal promovida por Lula, a escalada da inflação e a incerteza quanto ao real compromisso do governo com o ajuste das contas públicas. “O mercado são milhares de pessoas, não é apenas meia dúzia de grandes fundos da Faria Lima. O padeiro do interior da Bahia é mercado”, diz Meirelles.
“O mercado não é um partido político. Ele não tem uma posição uniforme. Este é um erro de avaliação cometido por muitos políticos. O mercado é formado por gestores do país inteiro, de pequenos ou grandes fundos, de pequenas ou grandes empresas, que vão tomando posições baseadas no que acham que vai acontecer na economia. E isso é feito independentemente de julgamento político. O mercado não se manifesta politicamente”, afirma.
Responsável pela implementação do teto de gastos quando esteve à frente do Ministério da Fazenda, Meirelles diz que o arcabouço fiscal, que substituiu o antigo modelo, “é razoável, apesar de não ser tão eficaz, tão forte e com efeitos tão rápidos”. O ex-titular da pasta elogia os esforços por mais austeridade encampados pelo ministro Fernando Haddad (PT), mas lamenta a “resistência” enfrentada pelo chefe da equipe econômica dentro do próprio governo.
“A grande dúvida é até que ponto o ministro vai conseguir aplicar algum regime de contenção de despesas. O governo já tentou cobrir a expansão de despesas com aumento de impostos, mas a tributação do Brasil já é uma das mais altas do mundo. Então, o caminho não é por aí. Terá de ser, necessariamente, por uma limitação de gastos”, aponta.
Com a autoridade de quem comandou o BC por 8 anos, entre 2003 e 2010, Henrique Meirelles avalia que o novo presidente da autarquia, Gabriel Galípolo, “está indo bem e agindo corretamente” para controlar a inflação, apesar dos protestos do PT contra a elevação da taxa básica de juros, hoje em 13,25% ao ano. “O BC, naturalmente, trabalha sob pressão, e o presidente do BC tem de estar preparado para isso”, resume.
Leia os principais trechos da entrevista concedida por Henrique Meirelles ao Metrópoles:
O governo Lula chegou à metade do mandato sob críticas de parte do mercado, que não recebeu bem o pacote fiscal anunciado no fim do ano passado. Essa desconfiança é justificável ou há certo exagero?
Não há dúvida de que há uma preocupação de pessoas que viveram outras experiências de um passado em que houve uma expansão fiscal muito grande no Brasil. É evidente que isso pode fazer a relação dívida pública-PIB subir, a inflação também subir e o BC ter de subir ainda mais os juros, o que prejudica a atividade econômica. Muitas pessoas estão preocupadas com isso, enquanto outras ainda acham que o governo vai controlar despesas e que tudo será equacionado com o decorrer do tempo. É difícil classificar uma reação de mercado como exagerada ou não. O mercado são milhares de pessoas, não é apenas meia dúzia de grandes fundos da Faria Lima. O padeiro do interior da Bahia é mercado. Ele não repercute na imprensa, mas acredita que o país vai crescer e compra mais um forno, contrata funcionários etc. Se ele acha, no entanto, que vem inflação, acaba subindo o preço, obrigando o BC a intervir quando isso é feito de uma forma mais generalizada. Temos de aguardar um pouco para ver como isso [a relação de Lula com o mercado] vai se desenrolar.
O senhor aponta que Lula vem apostando em uma política fiscal expansionista. É possível corrigir a rota?
Vai depender de uma decisão do governo. Eu sempre achei que o melhor programa social que existe é o emprego. O controle fiscal e uma economia que cresce mais e cria empregos formam a melhor combinação. É a melhor solução política, inclusive, para o próprio governo. Não será simplesmente com benefícios sociais que o governo vai ter uma aprovação popular crescente e voltando aos níveis em que estava antes. O segredo é o país crescer, mas de forma consistente.
O arcabouço fiscal está se sustentando ou é insuficiente no cenário atual? O governo Lula errou ao abolir o teto de gastos?
O arcabouço fiscal é razoável, apesar de não ser tão eficaz, tão forte e com efeitos tão rápidos quanto o teto de gastos. O teto era menos flexível e atacava diretamente a causa do problema. Quando eu assumi o Ministério da Fazenda, em maio de 2016, se nós pegarmos os 12 meses anteriores, o PIB brasileiro havia recuado mais de 5%, uma das maiores quedas da história do país e uma das maiores de todo o mundo em um país que não estivesse em guerra. Com o teto de gastos, houve uma reversão muito rápida. Em 2017, o Brasil já estava crescendo. O teto de gastos provou que era a melhor solução. De fato, ele acabou sendo substituído por algo menos eficiente.
Como o senhor está vendo o início do trabalho de Gabriel Galípolo na presidência do Banco Central? Ele terá autonomia em relação ao governo?
Quando eu assumi a autoridade monetária, em 2003, existia um acordo meu com o presidente Lula de aprovarmos a independência do BC. Um projeto chegou a ser apresentado naquela época, mas ficou claro que não seria aprovado porque havia muita resistência no Congresso. O presidente me chamou e disse: “Olha, Meirelles, não será possível aprovar essa independência do BC”. Eu disse a ele: “Presidente, nós temos um acordo. Eu agirei de forma independente e honrarei o nosso compromisso. O senhor tem a prerrogativa de me exonerar a qualquer momento, mas este é um problema seu, não meu”. E tocamos a vida assim. Eu fiquei na presidência do BC por 8 anos com total autonomia, como havíamos combinado. Pude tomar todas as decisões que julgava necessárias. O BC, naturalmente, trabalha sob pressão, e o presidente do BC tem de estar preparado para isso. O Galípolo, logo em sua primeira reunião de diretoria, seguiu o que o BC já vinha indicando, o aumento de 1 ponto percentual na taxa básica de juros. Ele tem dado sinais de que haverá um novo aumento de 1 ponto na próxima reunião. Então, pelo menos até agora, Galípolo está indo bem e agindo corretamente para alcançar o objetivo básico do BC, que é levar a inflação à meta.
Algumas instituições financeiras projetam que o Brasil pode entrar em recessão técnica ainda em 2025. Essa possibilidade é real?
A taxa de crescimento do Brasil tem surpreendido positivamente os analistas. O ponto objetivo é que as reformas que foram feitas no governo do presidente Michel Temer, como a reforma trabalhista, os avanços nas transações financeiras e a Lei das Estatais, agora estão mostrando os seus efeitos positivos sobre a economia. Se, porventura, ocorrer uma recessão técnica, a solução é muito fácil. Isso significaria que o BC subiu a taxa de juros um pouco mais do que precisava. Não estou dizendo que o BC está fazendo isso, mas apenas falando sob hipótese. Caso isso aconteça, basta baixar os juros – porque a inflação certamente já terá caído; não há inflação subindo com recessão técnica – para o país voltar a crescer.
Qual é a sua avaliação sobre o desempenho do ministro Fernando Haddad?
O ministro Haddad está tentando fazer um bom trabalho, mas vem enfrentando muita resistência e críticas por parte até de alguns ministros que querem gastar mais. A grande dúvida é até que ponto o ministro vai conseguir aplicar algum regime de contenção de despesas. O governo já tentou cobrir a expansão de despesas com aumento de impostos, mas a tributação do Brasil já é uma das mais altas do mundo. Então, o caminho não é por aí. Terá de ser, necessariamente, por uma limitação de gastos.
Recentemente, o presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab, fez críticas públicas a Haddad. O ministro está enfraquecido politicamente?
Eu não diria que está enfraquecido. O que acontece é que ele enfrenta posições divergentes dentro do governo, vindas de outros ministérios e do próprio PT, que acreditam que o país cresceria mais com expansão fiscal. O Kassab, possivelmente, esperaria posições mais contundentes por parte do ministro. Acho que o Haddad vem fazendo um trabalho adequado. De todo modo, é evidente que precisamos ter foco no resultado. Vamos aguardar o resultado deste e do próximo ano para fazer uma análise mais criteriosa e um julgamento definitivo.
Na semana passada, a Bolsa subiu forte e o dólar caiu no dia em que foi divulgada uma pesquisa que mostrou queda na aprovação do presidente Lula. É possível relacionar uma coisa à outra? O mercado está torcendo contra o governo?
O mercado não é um partido político. Ele não tem uma posição uniforme. Este é um erro de avaliação cometido por muitos políticos. “O mercado acha isso, o mercado fez aquilo”… O mercado é formado por gestores do país inteiro, de pequenos ou grandes fundos, de pequenas ou grandes empresas, que vão tomando posições baseadas no que acham que vai acontecer na economia. E isso é feito independentemente de julgamento político. O mercado não se manifesta politicamente. Um operador de um grande fundo não vai agir assim ou assado por causa de um posicionamento contrário ou favorável ao governo. Se fizer isso, vai fracassar. Ele precisa estar focado no retorno potencial dos ativos nos quais está aplicado, sejam ações, Bolsa, juros de curto ou longo prazo etc. O mercado reage à expectativa em relação ao desempenho da economia, mas não reage de uma forma uníssona. Se tem mais comprador na Bolsa do que vendedor, a Bolsa sobe. Se tem mais vendedor do que comprador, a Bolsa cai. Não se trata de uma posição partidária.
Em entrevista ao Metrópoles, em maio de 2023, o senhor disse que havia o risco de Lula seguir uma linha político-econômica semelhante à do governo Dilma Rousseff, que resultou em recessão. Esse risco persiste?
Não de uma forma tão radical. Naquele período do governo Dilma, houve uma expansão fiscal brutal, inserida na filosofia de que “gasto público é vida”. Não é exatamente o que está acontecendo agora. O Ministério da Fazenda vem tendo uma posição mais cuidadosa, assim como o Ministério do Planejamento. Certamente ainda não é o caminho ideal, como foi no primeiro governo do presidente Lula, quando o país cresceu e criou 11 milhões de empregos, somando os dois mandatos. Ele não está seguindo aquela linha. Mas também não está na linha que prevaleceu de 2011 a 2016, no governo Dilma. O atual governo Lula está, digamos, no meio-termo.